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24 de outubro de 2011

Palpiteiros da salvação alheia

condenado aprovadoAnos atrás havia um apresentador (em um programa sobre os bastidores da TV e do mundo das celebridades, que está no ar até hoje) que afirmava todas as vezes que morria um artista: “Fulano foi para o andar de cima.” Na cabeça daquele apresentador, alguém que se dedicou à arte com o fim de divertir e entreter o povo só poderia estar no céu, visto ser esta uma pessoa boa.

Aqueles que conhecem a Bíblia sabem muito bem que a salvação não é meritória, mas é concedida pela graça de Deus, mediante a fé (que também é dom de Deus) em Cristo Jesus. Porém, a despeito disso, tenho a impressão de que os cristãos facilmente têm se esquecido disso.

Como exemplo do que estou querendo dizer, deixe-me compartilhar algo que me foi dito por uma irmã, há alguns anos. Essa irmã, bem como sua mãe, era crente fiel, porém seu pai não. Quando ele faleceu, o pastor das duas foi convidado para fazer o ofício fúnebre e, segundo ela, com o caixão aberto ele colocou a Bíblia na cabeça do falecido e disse aos que estavam presentes: “Beltrano morreu e está no inferno. Ele viveu x dias (multiplicou a idade do morto por 365 dias) e não aceitou a Jesus.”

Por mais surreal que isso possa parecer, muitos cristãos têm feito isso constantemente. Há umas semanas morreu Steve Jobs, e não foram poucos aqueles que rapidamente afirmaram estar ele no inferno, o que é uma afirmação altamente precipitada.

Calma, estou longe de ser universalista. Não creio que todos os homens serão salvos e sei também que muitos têm se enganado quanto a seu estado espiritual a ponto de o Senhor afirmar que muitos, no dia final, dirão que realizaram milagres e prodígios em nome dele e ouvirão: “nunca vos conheci” (Mt 7.23).

Porém, creio também que somos muito rápidos em julgar o próximo e o problema disso está no fato de não termos dados suficientes para isso. Basta lembrar duas histórias bíblicas para perceber isso.

A primeira é a história do ladrão na cruz. Essa história, narrada por Mateus e Marcos, mostra dois ladrões, crucificados à direita e esquerda de Jesus, blasfemando e dirigindo ao Senhor impropérios. Se tivéssemos somente esses dados, seriamos rápidos em afirmar que os dois ladrões se perderam. Porém, Lucas registra outra parte da história, que faz toda a diferença. Ela afirma que, em meio aos insultos que dirigiam a Cristo, um dos ladrões começou a repreender o outro e rogou ao Senhor que se lembrasse dele, ouvindo de Jesus: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23.43).

A outra história é contada também por Lucas e fala da vida de um casal da igreja primitiva que vendeu um campo, depositou o dinheiro aos pés dos apóstolos e morreu. Se tivéssemos acesso somente a essa parte da história, provavelmente usaríamos o texto até para falar do privilégio do casal que pôde honrar a Deus entregando uma oferta como última atitude de sua vida. Entretanto, Lucas deixa claro que eles morreram por causa do juízo de Deus, que puniu sua mentira em dizer que estavam doando tudo enquanto retinham parte do valor do campo (At 5.1-11).

Nesses dois casos somos poupados de errar no julgamento porque temos a revelação da Palavra de Deus. Entretanto, não podemos afirmar categoricamente a perdição de quem quer que seja (a não ser que esteja declarada categoricamente nas Escrituras, como o caso de Judas, por exemplo) justamente por não ter acesso ao coração alheio e não saber o que se passou instantes antes a sua morte.

Pelo ensino das Escrituras, podemos até imaginar que muito provavelmente alguém tenha se perdido, ao olhar os frutos produzidos em sua vida e sua recusa em render-se ao Salvador, mas a afirmação categórica da condenação só pode ser feita pelo Senhor.

A graça de Deus é abundante e o mesmo Deus que salvou aquele ladrão que tanto blasfemava, concedendo-lhe o dom da fé a fim de que se arrependesse, nos salvou e é poderoso para salvar o pior dos pecadores, mesmo nos últimos instantes de sua vida.

Uma das orientações do Manual de Culto da IPB que acho mais interessantes trata justamente desse ponto, ao orientar sobre o ofício fúnebre: “O ofício fúnebre deve consistir principalmente na leitura de trechos da Escritura e atos de culto. O ministro não tem o dever de dizer se a pessoa, cujo corpo vai ser entregue à terra, morreu ou não impenitente, mas deve proceder de maneira que não se possa inferir de sua leitura ou palavras a salvação de pessoas, cujas vidas ou mortes não tenham sido cristãs. O único juiz, porém, é o Senhor.

Infelizmente, muitas vezes estamos mais preocupados com o outro do que com nós mesmos. Ainda que a Bíblia ordene o autoexame (1Co 11.28; 2Co 13.5), queremos mesmo é examinar o outro. Fazemos como Pedro, que, após ser restaurado pelo Senhor, ter recebido o encargo de pastorear suas ovelhas e ser informado a respeito do tipo de morte que teria, olhou João e perguntou a Jesus: “E quanto a esse?”. Quando assim procedemos somos passíveis da mesma repreensão do Senhor a Pedro: “Se eu quero que ele permaneça até que eu venha, que te importa? Quanto a ti, segue-me” (cf. Jo 22.15-23).

Preocupemo-nos, portanto, com a nossa situação diante de Deus e proclamemos aos homens que se arrependam dos seus pecados e se reconciliem com Deus, pois essa é tarefa nossa. Deixemos para aquele que julga retamente o veredicto sobre aqueles que serão condenados estando convictos de que “as coisas encobertas pertencem ao Senhor, nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei” (Dt 29.29).

Milton Jr.

4 comentários:

Filipe Machado disse...

Olá, amado.

Entendi seu posicionamento - e concordo com ele. Mas preciso fazer uma ressalva que é quanto ao que o texto deu a entender, isto é, que pode-se ser salvo sem nunca ter vivido uma vida cristã verdadeira. Estou de acordo com o exemplo do ladrão da cruz, mas esse é um exemplo que temos de ter bastante cuidado ao usar, porque frequentemente visita-se enfermos no leito da morte e oferece-lhes uma "oração de arrependimento" no intuito de salvar aquela pobre alma, quando na verdade esse é um ato bastante "complicado" de se fazer, pois parece-me que as pessoas aproveitam-se do frágil momento para oferecer o evangelho e diante disso, quem não o aceitaria? Certamente que pouquíssimos o rejeitam.

Ainda em tempo, temos na CFW, cap. 1, VI:

VI. Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, *ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela*.

A própria CFW demonstra que as coisas necessárias para a salvação encontram-se na Bíblia, isto é, é necessário que o homem de Deus tenha vivido uma vida sob à égide da Bíblia (ainda que por pouquíssimo tempo - poucas horas, que seja) para ser salvo.

O ladrão da cruz viveu o cristianismo, ainda que por pouquíssimo tempo - por isso fica difícil sustentarmos que Steve Jobs e tantos outros "bons homens" foram salvos.

Um abraço!
Filipe Luiz C. Machado
www.2timoteo316.blogspot.com

Milton Jr. disse...

Prezado Filipe,
Obrigado pela visita e comentário.
Eu teria muito problema com essa ressalva, visto parecer indicar salvação por obras.

A condição para a salvação é a regeneração, ou novo nascimento, obra exclusiva de Deus. A vivência de uma "vida cristã verdadeira" é uma consequência disso.

É claro que ordinariamente as coisas acontecem dessa forma. Alguém que professa a fé em Cristo tem de demonstrar isso em atos, porém, no caso de alguém regenerado instantes antes da morte, não haveria "tempo" para a demonstração de fé por meio das obras.

Temos que ter cuidado com esse posicionamento porque a própria CFW, citada por você, afirma em relação a crianças que morrem na infância: "As crianças que morrem na infância, sendo eleitas, são regeneradas e por Cristo salvas, por meio do Espírito, que opera quando, onde e como quer, Do mesmo modo são salvas todas as outras
pessoas incapazes de serem exteriormente chamadas pelo ministério da palavra"

Nesse caso, como seria a vivência de uma vida cristã autêntica?

É lógico que não podemos também afirmar categoricamente a salvação de alguém que fez a "oração de arrependimento" no momento da morte, bem como não podemos fazer o contrário. Deus é aquele que sonda os corações, por isso coloquei a orientação do Manual de Culto da Igreja Presbiteriana do Brasil, que acho muito sábia.

Em tempo, não sustento (e creio que nem dei a entender isso) que Jobs e outros "bons homens" foram salvos. Meu ponto foi ressaltar a rapidez com que muitos condenam ou absolvem pessoas com base naquilo que vemos, sem poder ter acesso ao coração.

grande abraço.

George Gonsalves disse...

Excelente texto. Devemos nos precaver de falar sobre o que não sabemos. Em certos momentos, a palavra mais correta que podemos pronunciar é a de Ezequiel (cap. 37): "Senhor tu o sabes". Parabenizo pelo ótimo blog. Convido a todos a fazerem uma visita no meu: www.igrejabatistadoverbo.blogspot.com.Um abraço.

Ana Carolina disse...

Este assunto sempre traz alguma discussão. Mas, o texto valeu para minha reflexão pessoal quanto ao julgamento precipitado. Creio que teremos muitas surpresas no céu: algumas pessoas que achávamos que lá estariam, não vamos encontrar e, o contrário tbm. Só sei que quero estar lá e ver a Cristo e a muitos irmãos queridos! : )
Pr. Milton, só uma pequena correção de referência de um dos textos bíblicos citados: no penúltimo parágrafo, seria Jo. 21.15-23.
Abs e até!