
Há alguns dias descobri que em Porto Velho, cidade onde moro, existe uma igreja judaizante. Ela é confusa em sua interpretação da Bíblia, em sua liturgia, na orientação da prática da vida cristã, no seu linguajar sectário e em outros comportamentos que caracterizam esta facção evangélica. Sei que o movimento de retorno às raízes judaicas está crescendo em todo o Brasil e produzindo um grupo de consumidores de parafernálias e superstições evangélicas com trejeitos israelenses. Deste modo, alguns objetos são introduzidos e usados no culto cristão como o toque do
shofar [1], o
kipar [2], e um véu que lembra os fariseus dos filmes bíblicos, chamado
talit [3], a
menorá [4] sobre a mesa da Ceia do Senhor, compõe o montante de objetos sagrados indispensáveis para o movimento. No dia a dia estimulam nos seus membros o hábito alimentar estilo
kosher [5]. Parece-me que isto tudo é resultado de uma teologia
fast food, articulada por uma mente superficialmente criativa e de respaldada ignorância bíblica, com uma mistura de cultura israelense contemporânea e uma pitadinha do esoterismo evangélico. Certamente os donos de lojas de artigos judaicos estão apreciando essa conversa toda!
Não perdendo a oportunidade os músicos gospel têm contribuído com a produção musical do gênero. Assim, a produção de cânticos que se assemelham mais ao lamento dos judeus pela sua incessante esperança de que o Messias ainda virá, ou a tristeza pela incompleta possessão do território da Palestina. Outras opções menos chorosas e com maior entretenimento são aquelas melodias que nos lembram o dançante folclore israelense.[6] Quando cantadas nos cultos assemelham-se mais a uma sinagoga, ao bate-testa no Muro das Lamentações, ou pulular teatral dos grupos folclóricos judeus, e não propriamente uma igreja cristã, aos gritos e invocações de
Iehoshua Hamashiah, e outras palavrinhas hebraicas na base do decoreba.
Este teimoso retorno às coisas ultrapassadas do Judaísmo é um esforço antigo. No Novo Testamento os apóstolos enfrentaram a incoerência do pensamento judaizante infiltrando-se na Igreja. O primeiro concílio se reuniu para deliberar sobre consulta de práticas judaicas (At 15:1-29). Também Paulo escreveu a epístola aos Gálatas, porque toda aquela região, incluindo várias igrejas locais, estava contaminada pelo legalismo hebreu.[7] O próprio apóstolo Pedro teve o seu momento de imaturidade judaizante, e por este motivo foi repreendido (At 10-11; Gl 2:11-21). Desde os primórdios existiram seitas alegando terem a verdadeira doutrina, à parte da Escritura, acrescentando novos ensinos e estranhas práticas à sua versão personalizada de Cristianismo. Grupos judaizantes surgiram no fim do século I, os três mais conhecidos foram os Nazarenos, os Elquesaítas e os Ebionitas, sendo o último de maior dano para a Cristandade primitiva.[8]
Como toda heresia o movimento judaizante na Igreja do século XXI tem as suas incoerências bíblico-teológicas. Digo incoerência porque eles querem arbitrariamente selecionar segundo a sua predileção, e convenientemente somente o que é fácil de obedecer, sem realmente explicar consistentemente com a Escritura Sagrada os motivos de suas crenças. Alerto para alguns perigos que este movimento, em todas as suas formas e sincretismos, bem como inovações multifacetadas oferece:
1. O movimento de retorno às raízes judaicas produz uma confusão quanto à transição da antiga para a nova aliança. A antiga aliança teve início entre Deus e Adão, e se estendeu até o cumprimento do derramar do Espírito Santo sobre toda a Igreja. No Pentecostes há o ápice da transição da antiga para a nova aliança, tendo a sua nova administração sob a obra consumada de Cristo. “Em Cristo” temos os benefícios da nova aliança, bem como a sua estrutura é adaptada, como por exemplo, a substituição da circuncisão pelo batismo, a guarda do Shabath pelo Domingo, a cessação das leis alimentícias, etc., e nisto percebemos continuidade e descontinuidade da antiga para a nova administração da aliança. O autor da Epístola aos Hebreus ensina acerca da finalização, a transição, o cumprimento e a consumação da antiga aliança, bem como do início da nova aliança em Cristo.[9]
2. A tradicional e didática divisão da Lei é ignorada. Embora na linguagem dos autores bíblicos eles mencionem apenas a palavra “lei”, precisamos ser hermeneuticamente justos ao sentido intencionado pelo autor e de aplicação da palavra em seu contexto. Mesmo usando o mesmo termo, nem sempre, os autores utilizavam no mesmo sentido a palavra “lei”. Tradicionalmente os teólogos têm categorizado a Lei da seguinte forma: civil, cerimonial e moral. Para o estudo deste assunto indico a leitura de Mauro Meister,
Lei e Graça (Editora Cultura Cristã), págs. 41-59. Resumindo conversa, sabemos que o uso civil cessou com o fim de Israel, enquanto nação teocrática, o aspecto cerimonial se cumpriu em Cristo, em sua obediência ativa, sofrimento e sacrifício expiatório e no seu ofício de sumo-sacerdote; todavia, o uso moral da Lei tem a sua continuidade até a segunda vinda de Cristo. O que esta heresia intenta é seletivamente impor a observância de determinadas leis civis e cerimoniais e costumes judaicos contemporâneos como parte do processo de salvação, ou apenas de santificação dos crentes sob a administração da nova aliança.
3. O movimento judaizante nega a suficiência do sacrifício de Cristo. Creio que aqui está a essência da heresia judaizante. Segundo as Escrituras, nunca ninguém foi salvo pela obediência pessoal da Lei. Todos são salvos pela obediência de Cristo, que mereceu o favor do Pai, e que substitutivamente foi punido em nosso lugar, sofrendo a condenação dos nossos pecados; e, esta salvação foi aplicada retroativamente na antiga aliança e atualmente na nova aliança. Nem no Antigo Testamento o uso cerimonial da Lei foi exigido como requisito para salvação dos crentes da antiga aliança. A tentativa de se obedecer às exigências cerimoniais da Lei como complemento de redenção ou santificação, interpretando serem as práticas da dieta alimentar, o linguajar hebraico mal pronunciado na conversação comum e na liturgia do culto e outras estranhas adições, somente testemunha o seu entendimento confuso da obra redentora de Cristo. Talvez, em parte isto explique a substituição em alguns templos ou salões de culto, onde excluem o símbolo da cruz e optam por colocar a estrela de Davi.[10]
4. Existe uma predisposição latente para o Unitarismo. As antigas seitas cristãs judaizantes tenderam, e por fim se tornaram unitaristas, ou seja, negaram a doutrina da Trindade. Parece que isto aconteceu por afirmarem somente a unicidade do Pai enquanto Deus, e por gerarem conflitos quanto à divindade e humanidade de Cristo.
5. A esquisita espiritualidade ritualística por meio de símbolos não-cristãos. Todos os objetos mencionados no início deste artigo, desde filactérios até a bandeira israelense, são venerados e usados tanto no momento de culto, como diariamente como amuletos. Durante alguns cultos a réplica mal feita da arca da aliança é carregada, tocada, rodeada por dançarinos, ou como ato de consagração. Estes são alguns exemplos desta espiritualidade irracional e não-bíblica, em que as pessoas cultuam, oram, cantam, e exercitam a sua crença segurando ou vestindo estes e outros objetos. Isto é no mínimo muito estranho ao ensino da Escritura Sagrada!
Preocupa-me que o movimento seja crescente, e ao mesmo tempo visto ingenuamente como se não oferecesse perigo. Os apóstolos e os primeiros cristãos rechaçaram os judaizantes por ser uma pedra de tropeço para a pregação universal do evangelho de Cristo, e também por não ser esta doutrina ensinada e nem as suas práticas exigidas por Jesus. Realmente houve na Igreja neotestamentária a tentativa por alguns de fazê-la voltar às práticas e crenças do Judaísmo, todavia, os discípulos discerniram sob o ensino do Mestre, que eram coisas ultrapassadas no processo da história da redenção, e retroceder era negar o progresso da revelação comunicada pelo Espírito Santo, e ao mesmo tempo a consumação da perfeita obra de Cristo.
Permita-me apenas lembrá-lo que nada há de novo em termos de heresia. Ela apenas recebeu uma nomenclatura e configuração nova, conjugando algumas idéias da nossa época em que os seus proponentes vivem e são influenciados. O que torna aparentemente nova esta estranha prática eclesiológica é que ela é comunicada num discurso pós-moderno e sob a influência de modismos pentecostais.[11]
NOTAS:[1] Para os curiosos acesse http://pt.wikipedia.org/wiki/Shofar .
[2] A origem medieval deste acessório não despertou o seu uso universal entre os judeus da época. O seu propósito é “diferenciar os judeus dos gentios, particularmente dos cristãos, que descobrem a cabeça na igreja.” http://israel.chai.tripod.com/id3.html .
[3] Este véu litúrgico era usado tradicionalmente pela liderança masculina. http://www.jesuspaintings.com/decorative-flag/showfar_blower_talit.htm
[4] A menorá ou menorah é o candelabro usado na época do Tabernáculo de Moisés e posteriormente no Templo de Jerusalém, que tinha a principal função iluminar, mas agora virou acessório estético da mesa da Ceia ou do púlpito. http://israel.chai.tripod.com/id4.html .
[5] Alimentos
kosher são todos aqueles que obedecem à lei judaica quanto à higiene.
[6] Para um exemplo aqui em Porto Velho acesse http://www.youtube.com/user/diegoppt .
[7] Carson, D.A., D.J. Moo, Leon Morris,
Introdução ao Novo Testamento (Edições Vida Nova), págs. 319-334.
[8] Estas seitas foram irrelevantes para a formação teológica da Igreja Primitiva. Mesmo reacionariamente os primeiros cristãos apenas firmaram o que haviam recebido dos apóstolos. As suas heresias podem ser conhecidas em seus escritos apócrifos como O
Evangelho dos Nazarenos, O
Evangelho Segundo os Hebreus e O
Evangelho dos Ebionitas. Para uma leitura complementar de estudos das seitas judaizantes primitivas veja Eusébio de Cesaréia,
História Eclesiástica (Editora Paulus), págs. 150-151; Louis Berkhof,
A História das Doutrinas Cristã (PES), págs. 42-43; Bengt Hägglund,
História da Teologia (Editora Concórdia), págs. 25-26; Roque Frangiotti,
História das Heresias (Editora Paulus), págs. 7-11.
[9] Como este texto não é um artigo de teologia bíblica, recomendo para estudar melhor este assunto: O. Palmer Robertson,
Cristo dos Pactos (Editora Cultura Cristã); O. Palmer Robertson,
Alianças (Editora Cultura Cristã); O. Palmer Robertson,
O Israel de Deus – passado, presente e futuro (Editora Vida); Gerard van Groningen,
O Progresso da Revelação no Antigo Testamento (Editora Cultura Cristã); Gerard van Groningen,
Revelação Messiânica no Velho Testamento (Editora Cultura Cristã); Gerard van Groningen, Criação e Consumação (Editora Cultura Cristã), 3 volumes; Geerhardus Vos,
The Teaching of the Epistle to the Hebrews (P&R Publishing); Geerhardus Vos,
Biblical Theology (Banner of Truth).
[10] Em geral, os adeptos deste movimento adotam uma escatologia
Dispensacionalista ou até mesmo
Ultradispensacionalista, em que ensina que os judeus possuem privilégios especiais acima e além dos gentios, ou até mesmo que serão salvos, simplesmente por serem judeus, independentemente de crerem em Cristo como o seu salvador pessoal, ou não!
[11] Caso queira ler um artigo com imagens em que se comprova a tese,
acesse.